O HALCÓN MALTÉS
Na serra da Estrela chove de maneira impiedosa por uma semana. Os invernos, embora a população esteja mais do que acostumada, geralmente são muito úmidos. Especialmente na aldeia, longe de povoações maiores, já que a cidade mais próxima é Unhais da Serra, a 28 quilómetros.
Na pequena aldeia, costumo encontrar-me com a minha amiga Margarida para fazer os TPCs. Estamos a acabar o ensino médio e, quase todas as tardes, passamos horas e horas juntas na sua mansão. Nós somos inseparáveis, embora a minha amiga às vezes me acuse de dizer coisas muito estranhas.
Hoje, após a refeição, tornei a pôr a minha capa de chuva, não costumo sair sem ela à rua. Após abrir-me a sua mãe a porta da casa, subi ao seu quarto, embora não entrei até ver, refletido no espelho, como a mãe me espiava. A minha amiga está bastante encatarrada, o doutor prescreveu-lhe repouso, ficar em casa e isso, para ela, não vai ser fácil. A Margarida não lhe obedece, levanta-se, vai daqui para lá e tosse bastante. Eu preocupo-me e repreendo-a. A sua mãe escuta-nos desde baixo e resmunga.
-Tranquila, Larissa. É uma teimosa cabeça-dura, até que não lhe dê febre…
Mas eu continuo a briga. Ela responde-me que não acontece nada, “se pioro, vou tirar alguns dias de folga, sem aulas”. Eu não me conformo, não devo fazê-lo, preciso-a, preciso que esteja sempre ao meu lado, ela é a minha aliada, a minha inseparável em todos os lugares que frequentamos do Centro. Nos recreios, na cafetaria, na sala de computadores, no ginásio… Começo a discutir com ela e obrigo-a a deitar-se na cama, a cobrir-se. Eu trago-lhe o livro e o caderno de história. A Margarida ri, acha que não é para tanto… Joga, estica as pernas para os lados, descobre-se… Eu permaneço firme, como deveria ser nestes casos. Desespero-me…, eu geralmente não gosto de sofrer oposição. A Margarida diz-me que só ela tem conseguido aguentar as minhas manias todos estes anos. E eu exaspero-me e começo a chiar-lhe, sacudo-a. A minha juba solta-se, os cabelos vêm ao meu rosto, mas não me rendo, continuo a tentar impor um pouco de disciplina. É o que a minha amiga precisa agora para poder curar-se. Obrigo-a a se cobrir, até a boca e a respirar pelo nariz. E, se possível, que tampe o nariz também, melhor respirar através do tecido da colcha de modo que lhe chegue o ar mais quente. Assim, porfiamos um tempo, talvez com mais… tenacidade que qualquer outro dia. E a Margarida, aos poucos, finalmente vai-se relaxando, parece ter aceitado a minha ajuda, a ajuda da sua melhor amiga.
No dia seguinte, não veio a Margarida às aulas. Na escola, à terceira hora, informam-nos de uma dramática notícia: “A vossa companheira, Margarida, morreu”. Eu alarmo-me, dou um grito na aula. Levanto-me, puxo os cabelos, choro muito alto, inconsolável… Embora, já os colegas me conhecem, não pode surpreender-lhes a minha atitude. E mais, tendo morrido a minha melhor amiga. Sinto que o mundo se me acaba.
Porém, à tarde, mesmo que cada dia, torno ao seu casal, chamo à porta e sai a sua mãe que, embora com rosto um tanto estranho, me invita a entrar para que suba ao quarto da filha. Ali, vejo a Margarida, bastante pálida, e sem sair da cama, e torno a realizar com ela os TPCs. E passamos a tarde juntas novamente. Ainda assim, não deixo de olhar para ela, a cada minuto: o seu semblante esbranquiçado, as suas olheiras, a sua pele roxa de aparência cerosa, os seus olhos fundos com um olhar avermelhado, os seus gestos lentos. E até algum fedor no hálito. Porém, continuamos a falar como se nada acontecesse, embora o que não posso suportar é que me esfregue com as suas mãos frias, umas mãos azuis acinzentadas, que são iguais que os seus nus pés quando ela os puxa pelos laterais da cama.
Para mim, não sai da minha cabeça a cena de quando nos informaram acerca da morte da minha amiga. E, num momento, não posso aguentar-me e pergunto-lhe:
-Margarida, é verdade que tu tens morrido?
-Sim, é certo. Percebes-te? Meto-te medo? –responde-me com uma olhada injetada de sangue que, agora sim, assusta-me.
-E como tem sido, por que te morreste?
-Não sei. Escutei a minha mãe que alguém me matou – responde-me, sem dar-lhe muita importância à pergunta.
Quando escuto isto, sinto um arrepio eletrizante a correr pela minha espinha.
Após, começo a sacudir-me na cama, tento gritar. Abro os olhos, acordo sobressaltada, as costas suadas… Até que sou consciente de que estava a sonhar. E imediatamente, vou lembrando o máximo de detalhes acerca do pesadelo. Que alívio que foi apenas um sonho!
Já amanheceu, é muito cedo, os galos não deixam de cantar. Estou a vestir-me com uma uma fadiga de aço no meu corpo, o sonho foi horrível embora, menos mal, que só foi isso. Sento-me à mesa sem terminar de tirar o aterrorizante pesadelo da minha cabeça. A minha mãe deixou-me o pequeno-almoço pronto, antes de apanhar o autocarro para chegar à fábrica onde trabalha. Eu vou preguiçosa, vadiando-me tudo o que posso, hoje sobra-me o tempo antes de sair à estrada aonde apanhamos o micro-autocarro para levar-nos à escola, lá em Unhais da Serra. Tenho vontade de voltar a a ve-la. Até que não veja a Margarida, o susto não vai embora.
Mas ela não sobe ao autocarro. Talvez, a leve a sua mãe…
Ao chegar à cerca do Centro Educativo, fico á espera de minha amiga, outros dias chega primeiro e é ela quem me aguarda. Vão transcorrendo os minutos e não a vejo. Toca a campainha, imagino que ela já estará dentro. Ainda assim, quando dou uma olhadela pela sala de aula, também não a vejo. Imediatamente, entra o professor de matemática. Traz a face muito séria, demasiado, embora não costuma ser muito simpático.
-Conhecem a nova? Não? Então, sinto ser eu a comunicar –diz-nos com a face afligida.
-O que se passa, professor? –sai das gargantas de mais de um da turma.
-Acabam de nos comunicar. Uma companheira de vocês morreu… -E todas as cabeças dos alunos viram à procura de quem falta na aula –. A Margarida, a Margarida morreu! A polícia acaba de chegar. Eles querem fazer algumas perguntas.
Eu fico arrepiada, um vento arrepiante desce pelas minhas costas de novo. O meu pensamento não acredita. Inumeráveis ideias vêm á minha cabeça. Percebo que alguém me toca por trás, mas não ligo; falam-me, mas os meus olhos estão muito abertos sem ver nada, só porto ideias, pequenas imagens que chegam devagar. Tenho dificuldade em me concentrar em algo.
Também se aproxima de mim o professor e o ouço a falar-me, embora eu ouça de longe. Eu percebo que todos sabem que eu era a sua amiga, a sua melhor amiga. Mas eles não me importam.
-Eu sabia, eu sabia… -sussurro -. Até sonhei com isso, senti que algo ruim tinha acontecido com ela.
Levanto-me e caminho entre as fileiras de mesas, vagando, batendo nalguma delas, não presto muita atenção em nada ao meu redor. Não sei aonde vou, estou chapada. Vejo que o professor vem ao pé de mim e pega no meu braço. Só quero sair da sala.
À volta da escola, já na aldeia, observo, ao longe, alguns veículos na área onde está a casa da Margarida. Quem terá sido? Talvez ela quis dizer-me no sonho que alguém a matou, que faça justiça. Não tenho nada de apetite, duas vezes introduzo a colher na boca e acabo por deixar o prato inteiro. E levanto-me imediatamente da mesa.
Saio da minha casa, preciso ir até o casal da Margarida. Ali, descubro bastante pessoal fora, baixo a majestosa faia próxima à entrada de sua casa. Dizem que a polícia está dentro, que a perícia foi há uma hora. E que em breve vão levantar o cadáver.
–Que desgraça, Larissa! –lamenta-se chorando uma vizinha quando me vê chegar.
Eu não me lembro de lhe responder, nem estou com vontade de me envolver em comentários com vizinhos ou em círculos formados pela área. Fico a olhar para a janela do seu quarto. Quero que ela olhe para fora, que olhe para mim. Se isso ocorresse, esquecer-me-ia de todas as asneiras que dizem acerca de que morreu. Por que teria que fazê-lo, não pode morrer assim, sem mais. Na minha mente, eu imploro para que apareça, mas os minutos passam e ela não aparece. Há polícias e guardinhas que entram e saem, e também outras pessoas sem farda a quem eu não reconheço.
Não posso aguentar mais e corro, degraus acima, procurando entrar na casa. O polícia que a vigila tenta deter-me, eu não obedeço e continuo na minha intrusão na casa. Vejo ao pai, no meio da carreira, sentado no saguão, derrotado, quebrado, ao lado de uma das avós da Margarida.
–Que vamos fazer agora sem ela, Larissa? –pergunta-me, a soluçar, quase sem olhar para mim.
E o polícia, que estava prestes a colocar as suas garras em mim, ao ver-me falar com o pai, desiste de me parar.
Subo a correr ao seu quarto. Ao chegar pressurosa à porta, a severa olhada de todos os presentes faz deter-me. Ali, à porta, há gente demais. À Margarida deitada na cama, apenas posso vê-la através dos breves espaços entre as pessoas que bloqueiam a entrada. Distingo um fotógrafo que dispara a sua máquina fotográfica para a cama onde está esticada a Margarida, para a minha amiga. Além do mais, vejo a sua mãe a conversar com um homem a quem chama “inspetor”. É evidente que a polícia leva muitas horas na mansão, a trabalhar. Falam de uma análise forense, que já aguardam.
A mãe lança-me um breve olhar onde não encontro nenhum traço de simpatia. Eu também não o devolvo, ela sempre teve sempre ciúmes de Margarida. Com certeza porque ela conseguiu monopolizar a atenção do pai, e nunca gostou disso. Afasto-me da porta e sento-me no chão de parquê do primeiro degrau da baixada da escala. Sou mais uma dos membros afetados da família a quem nos roubaram a Margarida. Pronto… afetados, talvez não todos estejam afetados, nunca gostei da mãe dela. A mim, também não me queria, aproveitava qualquer oportunidade para corrigir os meus comportamentos. Preciso ficar sentada, pensar…
Toca o telemóvel do inspetor. Afasta-se da porta, do resto das pessoas para escutar tranquilo. E vem a falar para onde eu estou.
(…) As provas de ADN, dentro de quinze dias, isso é muito. (…) Ao menos, preciso saber se são restos humanos. (…) Sim, com certeza? Você acha que é pele e sangue humano? (…) Em várias unhas da mão direita? (…) E poderiam ser dela mesma? Ao coçar-se ou algo assim? (…) Então, descartado pela analítica. São, com certeza, de outra pessoa.
O polícia desliga o telemóvel. Outro se aproxima dele.
–Alguma novidade, inspetor? -pergunta-lhe o recém-chegado quase num sussurro, apesar de eu fazer o possível por me poder aperceber.
–Eu penso que sim. A rapariga pôde tentar se defender do seu assassino. Talvez, até conseguiu arranhá-lo.
Eu olho para a mãe, que permanece à distância, atenta à conversa entre os polícias. Odeio-a. Estou cada vez mais convencida de que foi ela. Ela matou a Margarida. Por ciúmes. Porque sabia que a Margarida era melhor do que ela, que a filha ganhava-lhe em todos os aspectos. Maldita hipócrita, está a se esconder à frente da polícia, como se nunca tivesse quebrado um prato na sua vida. Mas eu sei bem quem é ela realmente. Eu olho para as roupas dela. Leva uma blusa de mangas compridas. Se pudesse tirá-la, com certeza encontraria algum arranhão nos seus braços. Odeio-a.
Os polícias acompanham a mãe a um quarto adjacente, que é o escritório do pai. Eu levanto-me. Penso em como posso desmascará-la, que pague pelo que fez à minha amiga. Passeio no andar de cima, pelo corredor existente entre os quartos e o corrimão, de onde se pode ver, abaixo, o refeitório. Numa parede está o espelho onde a minha amiga Margarida e eu experimentávamos mil vezes, onde provávamo-nos e trocávamo-nos as nossas roupas, onde jogávamos a maquilhar-nos…
Ao passar à frente dele, não posso deixar de olhar-me porque algo me surpreende. A minha cara está arranhada! É horrível! É como se um gato me tivesse arranhado.
Onde pude fazer-me isto! E olho para o meu braço direito, um pensamento angustiado me invade. Preciso arregaçar as mangas, levantar o suéter de lã que o cobre. E faço isso num empurrão.
O maior dos estremecimentos corre de ponta a ponta pelo meu corpo.
–Não é possível. Não, não, não…!
O HALCÓN MALTÉS

