Almas do Outro Mundo

Susete Romba

Cila era uma bonita jovem que vivia numa aldeia não longe do rio Guadiana. Com os seus dezoito anos era uma jovem alegre, divertida, no auge da sua juventude, elegante e com um certo ar de espanhola. Tinha uma particularidade, a Cila gostava de ler e o pai, também amante da boa leitura, sempre que ia a Faro ou Vila Real de Santo António, tinha de entrar numa livraria para comprar livros. Muitas vezes a Cila, para não a encontrarem e quebrarem os seus momentos de leitura, escondia-se debaixo da cama, uma linda cama antiga herdada da avó paterna. Sorrateiramente, deslizava até ficar bem escondida, procurando um raio de sol que, teimosamente, também lá se instalava. Ali se punha a ler e, tão absorta estava na leitura que, muitas vezes não ouvia, ou fingia não ouvir chamar por ela.

– Cila, onde estás? Era a mãe a chamar.

Passados alguns minutos:

– Cila, já não te chamo mais vez nenhuma! – Gritou a mãe bem alto. – Aparece, preciso de ti na cozinha.

Cila, um pouco constrangida, saiu debaixo da cama com o livro na mão, respondendo:

– Sim, mãe, desculpe, já lá vou.

Havia uma prática interessante entre ela e algumas vizinhas que eram analfabetas, mas que gostavam muito de ouvir ler. À tardinha, lá apareciam elas, cada uma com a sua cadeirinha na mão e sentavam-se à volta da Cila para a ouvirem ler. Quase sempre eram romances de Camilo Castelo Branco ou outros de cariz romântico e passional. Era interessante, para quem estivesse a apreciar aquele quadro, ver aquelas mulheres emocionadas a chorar, quando a leitura se referia a cenas tristes ou dramáticas, como encontramos nos romances de Camilo Castelo Branco.

Certa tarde, um primo da Cila, o Albino, que era um jovem alegre, divertido mas um pouco irreverente, ao aproximar-se do grupo e ao ver aquela cena ajoelhou-se, tirou o lenço do bolso e começou a chorar em pranto, a fingir sofrimento, o que fez rir toda aquela gente, cujas lágrimas de tristeza se juntaram às do riso.

O pai da Cila, sabendo que os filhos gostavam de ler e aprender, pô-los a estudar em Faro. Quando a Cila foi estudar ficou a viver na casa de uma família amiga dos pais; um casal, um filho e uma filha. A casa era arrendada e, quando a Cila lá chegou, estavam a mudar para outra casa com dois pisos. Dizia-se que essa casa era assombrada e que lá apareciam, de vez em quando, “almas do outro mundo”. O casal não ligou importância, mas a Cila tinha um pouco de medo. O tempo foi passando e ela foi-se habituando e passou a gostar das pessoas e do ambiente que se gerava naquela casa.

Ainda era Verão e certa noite quase todos tiveram de sair. O casal foi ao velório de uma pessoa amiga. A filha foi para o cinema, onde trabalhava e o filho saiu com dois amigos. A Cila ficou em casa e um pouco aterrorizada. Foi para o quarto, vestiu uma camisa de dormir branca, larga e comprida, foi para a cama e encostou-se para estudar um pouco. O silêncio instalou-se naquela casa e a Cila cada vez com mais medo. A certa altura começou a ouvir: tum, tum, tum. Coitada, levantou-se, abriu a janela do quarto que dava para um telhado e, com a sua camisa branca, larga e comprida, começou a andar de um lado para o outro em cima do dito telhado. A luz era fraca no lugar onde ela andava.

No Verão, os vizinhos tinham o hábito de se juntarem à porta de um deles para cavaquearem um pouco. Iam aparecendo com a sua cadeirinha na mão e assim se entretinham durante algum tempo.

– Valha-me aqui o “Santíssimo Sacramento” – gritou uma delas: “almas do outro mundo”! Olhem para cima do telhado da casa assombrada. Lá anda uma “Alma do outro mundo”!!!

Todos olharam e, de imediato, toda aquela gente se levantou assustada, pegou na cadeira e correu para casa, fechando-se a sete chaves.

A Cila, com a sua camisa de noite branca, larga e comprida, lá andava ela em cima do telhado. Quando se apercebeu que as pessoas da casa estavam a chegar, desceu até à cozinha. Aí, num momento de silêncio, todos começaram a ouvir: tum, tum, tum. A certa altura diz o senhor, olhando para um cesto com caracóis vivos, pendurado na porta dum armário:

– Olha o barulho que eles fazem quando se deslocam e caem uns em cima dos outros.

Pronto, estava tudo explicado. Os sons que a Cila ouvia era dos caracóis, não das “almas do outro mundo”, porque essas, são tão silenciosas como o próprio silêncio.

Conto baseado numa estória verídica

Susete Romba