Olinda Pina Gil
Naquele dia tinha chegado um novo utente ao Lar. Era um velhote de cabelo muito branquinho, cortado muito curto, mas com relativa abundância para a idade. Vinha numa cadeira de rodas, condição que o tinha destinado àquele lugar, pois até ali os filhos tinham conseguido, de certa forma, cuidar dele. O Lar era como tantos outros, uns idosos mais ativos que outros, ainda se juntavam a jogar às cartas e ao dominó. Outros fixavam-se na sua cadeira sem que dali saíssem, olhando inertes para uma programação televisiva que não lhes dizia nada. Outros ainda estavam completamente ausentes de si, da sua consciência, com casos a chegar ao descontrolo, proferindo impropérios e não-verdades.
– A minha filha! A minha filha!
Havia uma mulher de cabelo cinzento, desgrenhada, que gritava constantemente por uma filha desaparecida. As auxiliares abanavam a cabeça, procuravam paciência.
– Ela nunca teve filhos. Inventou aquela história. Diz que a filha desapareceu.
A velha não tinha família. Nunca houve quem cuidasse dela, não havia quem a visitasse. Tinha chegado ao Lar cedo demais. Vestia roupa dada, que raramente combinava, e que a própria muitas vezes estragava nos seus piores dias. As auxiliares que trabalhavam no Lar há mais tempo confirmavam que a história da filha tinha muitos anos.
Depois de instalado, depois da estranheza, o velhote começou a ambientar-se com o lugar e a conhecer outros utentes.
– É verdade. – Disse ele um dia – A filha dela desapareceu.
Fez-se silêncio absoluto na sala de convívio. Idosos e auxiliares. Até a televisão, naquele momento, teve uma qualquer falha e desligou-se.
– Foi depois da guerra, nas cheias. Eu conduzia um autocarro cheio de gente. Confesso que não tinha fixado muito bem os viajantes naquele dia, estava mais preocupado com a chuva, mas tinha reparado naquela mulher, sozinha, com uma criança ao colo. 2 ou 3 meses, no máximo. As crianças não precisavam de usar cadeira especial em transporte público, e iam no colo dos adultos. Era algo que eu temia, pois a mínima travagem poderia projetar a criança, a chuva era demasiada e infelizmente no caminho fomos abalroados por um deslizamento de terras e o autocarro foi arrastado. Perdi os sentidos, só tendo acordado durante o salvamento. Muitas pessoas desapareceram naquele dia, e a bebé também. Lembro-me da mulher, cheia de lama, a querer soltar-se dos socorristas e a seguir o rio de lama. Gritava: “a minha filha, a minha filha!”
Foi depois da guerra. Algumas crianças ainda não tinham sido registadas. A filha dela talvez não tivesse sido. Talvez nunca tenha existido.
Olinda Pina Gil

